A MP (medida provisória) 936, editada pelo governo no último dia 1º, abriu espaço para que empresas reduzam a jornada e os salários dos funcionários por meio de acordos individuais. O tema tem sido alvo de grande polêmica e está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal.
Além da possível inconstitucionalidade, a questão, segundo advogados e juízes, é que a MP deixa uma série de brechas na aplicação das novas regras. “Essas MPs que são feitas a toque de caixa deixam muitas lacunas. O problema é que elas têm validade imediata, mas com pontos a serem interpretados”, explica Cláudia Abdul Ahad Securato, sócia do escritório Oliveira, Vale, Securato & Abdul Ahad Advogados.
Que pontos são esses? A MP não determina como deverá ser o cálculo de contribuições e tributos. Por exemplo: o funcionário que teve a jornada reduzida por 90 dias terá direito a usar aquele período para cálculo de férias? Como fica a contribuição ao INSS? E o cálculo de tempo para a aposentadoria?
Nenhuma dessas questões está contemplada na MP editada pelo governo e deve, sim, gerar disputa judicial entre empresas e trabalhadores. “O entendimento deve vir pela jurisprudência”, diz Cláudia. Ou seja, a resposta estará nas primeiras decisões da Justiça.
Mas como vai funcionar, exatamente, essa redução de jornada? O trabalhador que tiver a jornada reduzida em 50%, por exemplo, deve trabalhar pela metade dos dias usuais e deve receber apenas metade do salário. Essa metade é chamada de salário-base, e deve continuar a ser paga da mesma forma que antes.
Os outros 50% serão parcialmente repostos por um benefício pago pelo governo federal. Chamado de BEm (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda), o auxílio será proporcional ao seguro-desemprego que esse trabalhador teria direito de receber. Então, tomando ainda como exemplo o trabalhador que teve a jornada e o salário reduzidos pela metade, ele receberá, além do salário-base, 50% do valor do seguro-desemprego.
“O benefício tem a mesma natureza do seguro-desemprego, então sobre ele não há contribuição para o INSS e nem cálculo para o recolhimento de FGTS. O trabalhador estará tendo prejuízo em um conjunto geral remuneratório”, diz Noemia Porto, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho).
A MP permite também a suspensão do contrato de trabalho por 60 dias. Nesse período, o trabalhador não terá jornada e receberá somente o seguro-desemprego.
Como fica o recolhimento do FGTS? Mensalmente o empregador recolhe um valor equivalente a 8% do salário do funcionário para o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). Com a redução, esse cálculo será somente sobre o salário-base — o benefício pago pelo governo não entra na conta. Quanto maior a redução de salário e jornada, menor será a contribuição para o FGTS.
No caso da suspensão da jornada, não há recolhimento algum para o Fundo, e nem é possível sacar os recursos depositados.
E a contribuição para a Previdência? A lógica é a mesma do FGTS. A contribuição ao INSS é calculada pelo salário, e há alíquotas distintas para cada faixa salarial. A tabela com os percentuais de contribuição está no site do INSS.
Sendo assim, se o salário-base diminuir, tanto as alíquotas de contribuição quanto os valores de recolhidos serão menores. Esse ponto impacta quem está próximo de se aposentar, já que essas contribuições menores devem reduzir a média usada para calcular o benefício da aposentadoria.
Já o tempo necessário para a saída da ativa não deve ser alterado. “Não há mudança no cálculo de tempo para se aposentar, porque a redução de jornada ou a suspensão do contrato de trabalho não é um não-contrato”, explica Cláudia.
Como fica o cálculo de férias e 13º? Quem teve a jornada reduzida ou o contrato de trabalho suspenso continua tendo direito a férias a cada 12 meses — não importa se nesse período houve alguma dessas duas ocorrências. O que provavelmente mudará é o cálculo dessas férias. Isso porque o benefício também leva em conta o salário-base.
Nos meses em que a jornada e o pagamento forem reduzidos, o cálculo de férias será menor. O mesmo vale para o 13º salário. “Vamos usar o paralelo de quem tem um salário fixo e mais comissão. Tanto as férias quanto o 13º são calculados com base na média dos últimos 12 rendimentos”, diz a advogada do escritório Oliveira, Vale, Securato & Abdul Ahad Advogados.
As empresas devem dividir o salário-base por 12 todos os meses para chegar ao benefício final. Por isso, mesmo quem voltar a receber integralmente após a crise deve ser afetado nesse aspecto.
Esse tempo de trabalho vale para o cálculo de aviso-prévio? O entendimento é que sim, já que o contrato de trabalho está vigente. Mas a forma com que o aviso-prévio será calculado, caso o empregador ou a empresa não quiserem cumpri-lo, não está clara.
Esses entendimentos podem mudar? Sim. Como não há uma regra oficial, a tendência é que as empresas decidam de acordo com as políticas internas, mas tanto a advogada Cláudia quanto a juíza Noêmia acreditam que esses pontos devem causar uma enxurrada de processos na Justiça Trabalhista nos próximos meses. “Até que haja um parecer das instâncias superiores, devemos ver decisões diferentes”, diz Cláudia.
O STF vai julgar uma ação relacionada a essa MP na quinta-feira. Os ministros podem mudar esses pontos? Não, porque o ponto que o STF julgará não tem a ver com essas lacunas deixadas pela MP. O que a Suprema Corte analisará é se esses contratos de redução de jornada ou de suspensão do trabalho podem ser firmados em acordos individuais, ou se há a necessidade da mediação do sindicato em acordo coletivo.
Na semana passada, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar em uma ação que questionava esse ponto, e determinou que todos os acordos têm validade imediata, mas devem ser submetidos ao sindicato da categoria. Se o sindicato não se manifestar em 10 dias, então as condições passam a valer em definitivo. Se ele se manifestar, o acordo pode ser alterado ou até desfeito.
Esse impasse criou um problema imediato, porque mais de 1 milhão de acordos foram feitos desde que a MP foi publicada. Caso o Supremo indique a necessidade de se ouvir o sindicato, todos esses processos devem ser revisados.
“Se a MP for invalidada, boa parte das empresas que buscaram os acordos deve demitir. As discussões na Justiça aumentarão, de qualquer forma, porque já há empregadores sem dinheiro sequer para pagar as rescisões”, alerta Cláudia.