DOUGLAS DE OLIVEIRA SANTOS

Pós-Graduação em Direito de Família e Sucessões

Escola de Pós-Graduação de São Paulo e 

Estado de Direito de Campo Grande/MS

  1. A EVOLUÇÃO DO REGIME DE BENS NO DIREITO BRASILEIRO:

Com o início da humanidade e a formação da família, surgiu a união entre homes e mulheres, que teve como base, além da procriação para perpetuação da espécie, a sociabilização entre os sexos. Com o advento do cristianismo, além da monogamia, passaram a existir pactos regulatórios da convivência, com o intuito de resguardar as uniões, através dos chamados casamentos. 

E com o passar dos anos, já no período moderno, o Estado separou-se da religião, fazendo com que dois atos essenciais passassem a reger a vida matrimonial, um visto sob a ótica religiosa e outro pela jurídica. 

Ao longo das décadas, a evolução do pensamento modificou substancialmente o antigo modelo de sociedade, outrora baseado nos laços de parentesco, deixando de existir, e dando lugar às lutas das classes sociais e submissão do regime familiar às relações de propriedade.

 Neste sentido ensinou Friedrich Engels: 

  […] Nessa estruturação da sociedade, fundada nos laços de parentesco, a produtividade do trabalho aumente sempre mais e, com ela, se desenvolvem a propriedade privada e as trocas, as diferenças de riqueza, a possibilidade de empregar força de trabalho alheia e, desse modo, a base dos antagonismos de classe: novos elementos sociais que, no transcorrer das gerações, procuram adaptar a velha organização social às novas condições até que, por fim, a incompatibilidade entre ambas produz a transformação completa. A velha sociedade, baseada nos laços de parentesco, é destruída em decorrência do choque entre as classes sociais recém-formadas. Em seu lugar surge uma nova sociedade, organizada em Estado, cujas unidades inferiores já não são agrupamentos sedimentados em laços de parentesco, mas unidades territoriais, uma sociedade em que o regime familiar está totalmente submetido às relações de propriedade e na qual se desenvolvem livremente as oposição de classe as lutas de classes que constituem o conteúdo de toda a história escrita até nossos dias […]  

Merecem destaque no cenário da evolução histórica da família, as lutas sociais em busca de igualdade de condições entre homem e mulher, consideradas à base jurídica imposta pela soberania mundial para o fortalecimento da paz e segurança entre os povos. 

No Brasil, as lutas por igualdade culminaram na adesão do Estado Brasileiro a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher. Tal fato foi considerado histórico, apto a contemplar o Princípio da Justiça e reafirmar a soberania nacional e a integridade social. Neste sentido leciona a doutrinadora Flavia Piovesan, como se pode observar:

[…] Afirmando que o fortalecimento da paz e da segurança internacionais, o alívio da tensão internacional, a cooperação mútua entre todos os Estados, independentemente de seus sistemas econômicos e sociais, o desarmamento geral e completo, e em particular o desarmamento nuclear sob um estrito e efetivo controle internacional, a afirmação dos princípios de justiça, igualdade e proveito mútuo nas relações entre países e a realização do direito dos povos submetidos à dominação colonial e estrangeira e a ocupação estrangeira, à autodeterminação e independência bem como o respeito da soberania nacional e da integridade territorial, promoverão o progresso e o desenvolvimento sociais, e, em conseqüência, contribuirão para a realização da plena igualdade entre o homem e a mulher[…].

Logo, foi no antigo Código Civil de 1916, que se iniciaram as novas bases do Direito de Família, especificamente nas disposições afetas a propriedade, pois foi ele quem passou a regular de forma específica a família do século passado, embora tenha adotado inicialmente um único modelo de família, patriarcal, indissolúvel, constituída unicamente pelo matrimônio. 

Em que pese ter sido considerado inovador em sua versão inicial, por trazer em seu bojo dispositivos específicos sobre o Direito de Família, o antigo Código Civil, praticava uma precária e discriminatória abordagem sobre família, de modo a impedir sua dissolução, prevendo distinção entre seus membros e fazendo alusões preconceituosas com relação a pessoas unidas sem casamento e filhos havidos fora dele.

 Contudo, a evolução pela qual passou a família, fez com que os legisladores da época elaborassem várias alterações e inovações nos textos legais, constando dentre as mais importantes o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) e a Lei do Divórcio (EC 9/77 e Lei 6.515/77).

Destaca-se a Lei 4.121/1962, que devolveu a mulher casada à inteira capacidade de administração de seus bens, passando ela a ter direito reservado sobre os bens alcançados como produto do seu labor.

De outro contorno, o divórcio por sua vez, acabou com o antigo conceito de família, até então indissolúvel, segundo as leis brasileiras, fazendo previsão da possibilidade de dissolução do vínculo matrimonial e impondo o regime da comunhão parcial de bens como o legal.

Com efeito, embora relevantes os diplomas legais supramencionados, foi a Constituição Federal de 1988 que mais inovou sobre a matéria, instaurando a igualdade entre os sexos, entre os filhos e a proteção igualitária da família constituída tanto pelo casamento como pela união estável, além da família monoparental, criada por um dos pais e seus descendentes.

Conforme bem preceitua o Doutrinador Luis Edson Fachin, “após a Constituição, o Código Civil perdeu o papel de lei fundamental do direito de família”.

Destarte, com o advento do Código de 2002, que entrou em vigor em 11 de Janeiro de 2003, a parte dedicada ao Direito de Família se apresentou como um aglutinador das significativas inovações legislativas e conceituais a respeito desse ramo do direito, que conforme já disposto acima, a partir da Constituição Federal, passou a se mostrar extremamente dinâmico. 

Sobre o atual modelo do Direito de Família, leciona a Doutrinadora Maria Berenice Dias, vejamos:

[…] O surgimento de novos paradigmas, quer pela emancipação da mulher, quer pela descoberta dos métodos contraceptivos e pela evolução da engenharia genética, dissociaram os conceitos de casamento, sexo e reprodução. O moderno enfoque dado à família pelo direito volta-se muito mais a identificação do direito afetivo que enlaça seus integrantes[…]   

 Com relação aos regimes de bens, o novo código trata sobre a matéria no segundo título, prevendo quatro modalidades de regimes, sendo elas o regime da comunhão parcial, comunhão universal, separação de bens e participação final nos aquestos.

Cabe pontuar que o regime dotal, previsto no antigo Código Civil, foi revogado pelo atual, que passou a prever também a possibilidade de mudança do regime de casamento após a sua celebração, mediante autorização judicial, o que era vedado no Código anterior.

As demais modificações inseridas no âmbito do Direito de Família pela edição da Lei 6.515/1977 e os regimes de bens tratados no antigo Código civil, assim como no atual, serão discutidas em capítulos específicos mais à frente.

  1. REGIME DE BENS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002.

O atual Código Civil, no que se refere aos regimes de bens, foi substancialmente modificado, se comparado com o Código Civil de 1916, no entanto, mantiveram-se três dos regimes adotados pelo Código anterior.

No Código Civil de 2002, restaram contemplados, no que se refere aos regimes de bens, quatro modalidades distintas, sendo elas: a comunhão universal; a comunhão parcial; a participação final nos aquestos e a separação de bens.

O regime da comunhão universal, aplica-se para os casos em que os nubentes pretendam transformar o casamento em uma união não somente de vidas, mas também de bens.

Para adoção desta modalidade de regime de casamento, é necessária a formalização do pacto antenupcial, através do qual, deverão optar pelo regime da comunhão universal de bens.

Esclareça-se, que ao optar pelo regime em análise, ocorre a junção do patrimônio dos nubentes, que compreende toda a massa patrimonial trazida com cada um para o casamento, daí formando uma única universalidade de bem, a qual se agrega tudo o que for adquirido durante o vínculo conjugal, por qualquer dos cônjuges, a título oneroso, por doação ou herança.

Por outro lado, o regime da comunhão parcial de bens, também conhecido como regime legal, passou a ser adotado como a regra de regime de bens em caso de ausência de pacto antenupcial em sentido contrário, sendo mantido nos mesmos moldes quanto a esse aspecto também no Código Civil de 2002.

No que tange as peculiaridades do regime em destaque, esclareça-se que ele é considerado um regime de separação quanto ao patrimônio passado e de comunhão quanto ao futuro. Nesse regime formam-se três massas de bens: os bens do cônjuge varão, os do cônjuge virago e os bens comuns.

Embora seja o regime adotado automaticamente na ausência opção por outro, aos nubentes que se casarem pelo regime da comunhão parcial de bens é lícito firmar pacto antenupcial para deliberar sobre temas ligados ao patrimônio de cada cônjuge e a sua administração, como por exemplo, fazer previsão sobre a comunicabilidade dos direitos patrimoniais incidentes sobre a obra intelectual.

Em relação ao regime da separação de bens, ele também decorre do pacto antenupcial ou de alguma disposição legal que torne obrigatória a sua adoção.

Nesta modalidade de regime, cada consorte conserva, com exclusividade, o domínio, a posse e a administração de seus bens, tanto sobre os presentes como em relação aos futuros, sendo de cada cônjuge a responsabilidade exclusiva pelos débitos contraídos antes e depois do casamento.

No regime da separação de bens, existe total independência patrimonial entre os cônjuges e ele em nada altera a propriedade dos bens dos consortes, tampouco conferindo expectativa de ganho ou disposição sobre os bens do companheiro. Nesta modalidade de regime de bens, a autonomia patrimonial garante ao cônjuge o direito inclusive de alienar ou gravar com ônus reais seus bens imóveis sem a necessidade do consorte anuir.

Por fim, o regime de participação final nos aquestos, introduzido no direito brasileiro pelo Código Civil de 2002, é tratado como um regime híbrido, que também necessita de pacto antenupcial. Quando se diz que o regime em estudo é híbrido, tal alegação justifica-se em razão de ser semelhante ao regime da separação de bens na constância do casamento, no entanto, aproxima-se da configuração prevista para a comunhão parcial de bens na partilha entre vivos.

Significa dizer, que embora vigore o regime da separação de bens durante o matrimônio, em caso de partilha entre vivos, será adotado o regime da comunhão parcial, dividindo-se os aquestos que forem apurados.

Feita a análise da forma como se procede em cada um dos regimes de bens, inclusive abordando suas peculiaridades, para que se possa concluir sobre a comunicabilidade ou não dos direitos patrimoniais incidentes sobre a obra intelectual, faz-se necessário abordar o tema atinente ao direito autoral e a obra intelectual.

  1. DIREITO INTELECTUAL (AUTORAL) À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E DA LEI 9.610/98:

  Conceituando o Direito de Autor, pode-se destacar que se constitui no ramo do Direito Privado, que tem por objetivo a disciplinação das relações jurídicas decorrentes da criação e da utilização de obras intelectuais estéticas. Cuida-se, dessa forma, da regência de todas as relações decorrentes do nascimento e da comunicação das obras literárias, artísticas e científicas, na defesa dos interesses de seus criadores (ou sucessores, ou cessionários de direitos). (BITTAR, 1989, p 15).

No que pertence a sua natureza jurídica, a doutrina define da seguinte forma:

[…] Em linhas gerais, o direito autoral tem, ao mesmo tempo, características de direito pessoal e de direito real, citados na subdivisão romana, o que já seria suficiente para se criar uma nova categoria na subdivisão romana: a intelectual[…]”. 

Neste sentido, merece transcrição os ensinamentos doutrinários de BEVILÁQUA:

[…] Pensam uns que se trata de direito individual, não desprendido da personalidade, porque, no dizer de BLUNTSCHLI, “a obra é a expressão direta do espírito pessoal do autor”. Adotaram o mesmo ponto de vista LANGE, DAHN, e TOBIAS BARRETO. Entendem outros que o direito dos autores é mero privilégio, temporàriamente [sic] concedido, para aumento e progresso das letras, das ciências e das artes, o qual se defende considerando-se ato ilícito a sua lesão. GERBER, na Alemanha, e, entre nós, MEDEIROS E ALBUQUERQUE, aquém se deve a lei n.º 496, de 1º de agôsto de 1898, e COELHO RODRIGUES, Alguns denominam esta relação jurídica monopólio de exploração. […].(grifo nosso)

E a autoria da Obra Intelectual de tão relevante, mereceu proteção destacada na Magna Carta de 1988, que no art.5°, XXVII, fez previsão de que: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissíveis aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.

Prosseguindo, a Constituição Federal no inciso seguinte do artigo supracitado, qual seja, XXVIII, assegurou, dentre outras questões, o direito de utilização e fiscalização do aproveitamento econômico das obras intelectuais: “são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas.”.

Segundo o Doutrinador Luiz Guilherme Marinoni (p.29), “A Constituição Federal ressaltou a exclusividade dos direitos autorais, impondo ao legislador o dever de tutelá-lo, além de prever a necessidade de fiscalização”.

Logo, para cumprir este dever, o legislador editou a Lei 9.610/98, que dentre várias questões inerentes ao direito intelectual, atribui natureza jurídica de bem móvel a obra intelectual (art.3), estabelecendo que os negócios jurídicos sobre esta modalidade do direito devem ser interpretados de maneira restritiva (art. 4) e definindo as obras intelectuais protegidas como sendo criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporta, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como as obras de desenho, pintura gravura, escultura, litografia e arte cinética (art. 7, VIII).

Por outro lado, a referida norma jurídica esclareceu nos artigos 11 e 22, que “autor é a pessoa física criadora da obra literária, artística ou científica” e a ele pertencem “os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”.

No que se refere a obra intelectual, a Lei aborda o tema sobre dois enfoques distintos, ressaltando que ela é composta por conteúdo moral w patrimonial, possuindo natureza jurídica sui generis.

Em relação aos direitos morais, art. 24 do diploma em estudo, define os direitos morais no inciso I a VII, estabelecendo que “por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV (parágrafo 1°)”, ao passo que no artigo 27, estabelece que “os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis”.

Por outro lado, no que se refere aos direitos patrimoniais, nos termos dos arts. 28 e 29 da mesma Lei, resta esclarecido que “cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”, dependendo de sua prévia e expressa autorização “a utilização da obra, por quaisquer modalidades”.

Logo, por disposição da própria Lei, fica claro que além do direito patrimonial, há um vínculo moral que liga o criador à sua obra.

E não poderia ser diferente, pois como se pode verificar do próprio nome obra intelectual, a propriedade intelectual está eternamente ligada ao intelecto e a criativa manifestação de seu autor. Há, sem sombra de dúvidas, um evidente vínculo moral que liga o criador à criatura.

Ao bem da verdade, após a edição da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98) não se fala mais em “propriedade”, para definir o tipo de relação jurídica entre o autor e da obra intelectual e está. Agora se fala, pura e simplesmente, em titularidade de um direito intelectual, de conteúdo a um só tempo patrimonial e não patrimonial, que se denominam “direitos patrimoniais” e “direitos morais”.  (grifo nosso).

Com efeito, evidentemente os direitos morais sobre a obra intelectual não se comunicam, razão pela qual o presente estudo deve convergir especificamente para a análise acerca da comunicabilidade do conteúdo patrimonial da obra intelectual.

Desse modo, tem-se que a criação intelectual é monopólio exclusivo do criador da obra, visto ser um ramo do direito sui generis, carregado de patrimonialidade e também de cunho moral, como já destacado, de natureza personalíssima, não podendo se comunicar com o cônjuge ou companheiro, salvo pacto antenupcial em sentido diverso.

Sobre a diferença entre os direitos patrimoniais e morais sobre a obra intelectual, merece destaque o entendimento da Doutrinadora e Desembargadora do TJRS, Maria Berenice Dias:

[…] Ainda em relação ao tema, cumpre dizer que a principal diferença entre os direitos patrimoniais e direitos morais está na possibilidade do criador da obra livremente dispor dos direitos patrimoniais (face econômica da obra ou criação), enquanto que os direitos morais permanecem investidos, tão-só e permanentemente, na pessoa do criador. […] .

E a doutrinadora ainda arremata a questão, dispondo que: 

[…] E é assim que o autor das obras intelectuais, inclusive por força do que dispõe o próprio art. 3º da Lei nº 9.610/98, que dá aos direitos autorais status de bem móvel, tem permissão para, nos limites legais, explorar economicamente a sua criação[…].

Portanto, resta claro que de tão relevante, a obra intelectual mereceu proteção constitucional, havendo por ocasião de tal proteção, a edição de uma Lei Específica para regular a matéria, na qual restou definido o que é obra intelectual, quem são os criadores, além da sua natureza jurídica sui generis, possuindo a obra intelectual natureza patrimonial e moral.

  1. DA INCOMUNICABILIDADE DO DIREITO INTELECTUAL NA PARTILHA ENTRE VIVOS, NA AUSÊNCIA DE PACTO ANTENUPCIAL.  

Certo é, que a matéria analisada neste tópico não é corriqueira em nossos tribunais, de modo que nem todos os Tribunais de Justiça dos Estados já tiveram oportunidade de enfrentar a matéria, razão pela qual, ainda pairam muitas dúvida aos operadores do direito quando se deparam com uma ação de divórcio, ou de separação judicial, em que se discute a partilha de obras de arte pintadas, ou esculpidas por um dos consortes, dentre outras obras intelectuais.

Primeiramente, é importante destacar que no caso em exame, a abordagem sobre a comunicabilidade ou não da obra intelectual na ausência de pacto antenupcial, se restringe a partilha entre vivos, sendo certo que não se discute que o proveito patrimonial da obra intelectual recebida durante o vínculo conjugal, dependendo do regime de bens, comunica-se.

Feito este esclarecimento, prossegue-se com a análise do tema.

E neste tocante, quem não conhece profundamente a matéria afeta ao direito autoral, poderia até imaginar que na partilha entre vivos, seria o caso de eventual incomunicabilidade da obra autoral confeccionada por um dos consortes, em razão de ser considerada a obra intelectual um instrumento do trabalho, ou um bem de uso pessoal, cuja incomunicabilidade está expressamente prevista no CCB. Senão, vejamos: “Art. 1.659. Excluem-se da comunhão(…) V – os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão; (…)Art. 1.668. São excluídos da comunhão (…) V – Os bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.

 Ocorre, que no caso em análise, a razão para a incomunicabilidade das obras autorais não consta do Código Civil Brasileiro, ela vem expressa na Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98).

Neste tocante, merece atenção a redação do art. 39 da referida Lei, que dispõe que “os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo se houve pacto antenupcial em sentido contrário”.

Significa dizer, que se as partes na celebração do casamento, realizarem pacto antenupcial neste sentido, serão considerados comunicáveis os direitos patrimoniais das obras intelectuais, de modo que, se não houver o pacto, será incomunicável.

Com efeito, em que pese a previsão específica na Lei de Direitos Autorais, em relação a incomunicabilidade da obra intelectual na ausência de pacto antenupcial, como já destacado acima, existem julgadores e doutrinadores que divergem deste entendimento, embora sejam uma corrente minoritária.

O entendimento de que os direitos patrimoniais da obra intelectual é comunicável na partilha entre vivos, independentemente de pacto antenupcial, está fundamentado segundo eles, no sentido de que deve ser realizada uma análise sistematizada do artigo 39 da Lei de Direitos Autorais, conjuntamente com o art. 1.659, VI, do CCB, e os princípios da solidariedade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, razão pela qual, desde a criação da obra intelectual, o consorte que não  a produziu, teria direito a 50% do direito patrimonial no momento da partilha.

Neste sentido, é o entendimento dos doutrinadores Jaury Nepomuceno de Oliveira e João Willington, senão, vejamos:

“Os direitos patrimoniais de autor são incomunicáveis, (…) Porém, é diverso dos rendimentos destes direitos, resultantes da exploração comercial da obra. Estes sim, se comunicam. Tanto isso é verdade que o cônjuge poderá promover a defesa da obra em juízo. Desta maneira, havendo separação do casal, esses rendimento deverão entrar na partilha de bens”.(grifo nosso).

Com essa mesma linha de raciocínio, divergindo do voto do Relator, a Desembargadora do TJRJ, Flávia Romano de Rezende, nos autos do agravo de instrumento nº 0052795-61.2012.8.19.0000, entendeu o que segue:

Ante o exposto, resta demonstrada a divergência legal e doutrinária aplicável à espécie o que por si só justifica a concessão de liminar pleiteada em sede cautelar de arrolamento, eis que evidenciada a presença do periculum in mora, razão pela qual se dá parcial provimento ao recurso de agravo, tão somente para retirar do arrolamento os utensílios de uso profissional (pincéis, tintas, telas, etc) do agravante, bem como, devolver a posse direta das obras de arte ao mesmo, após o término da avaliação. Outrossim, em caso de eventual alienação das referidas obras ou de qualquer outra forma de obtenção de rendimentos pela exploração econômica das mesmas, entendo que deverá o agravante depositar no juízo competente da ação principal, 50% dos proventos percebidos.

Logo, em que pese a divergência de parte da doutrina e da jurisprudência, é majoritário atualmente nos tribunais dos estados que já enfrentaram a matéria, o entendimento de que é incomunicável os direitos patrimoniais da obra intelectual na partilha entre vivos, na ausência de pacto antenupcial. 

Merece destaque os seguintes julgados:

SEPARAÇÃO JUDICIAL. PARTILHA DE BENS. DIREITOS AUTORAIS. INCOMUNICABILIDADE. ACERVO FOTOGRÁFICO. DESCABIMENTO DA AVALIAÇÃO. 1. As fotografias tiradas pelo cônjuge, fotógrafo profissional, são obras intelectuais protegidas, havendo sobre elas direitos morais e patrimoniais. 2. Direitos patrimoniais são a face econômica da obra ou criação, enquanto que os direitos morais permanecem investidos, tão-só e permanentemente, na pessoa do criador.  3. Exercício do direito patrimonial é exclusivo do criador (CF art. 5º, XXVII Lei nº 9.610-98, art. 28), não admitindo concomitância com pessoa diversa e de forma contrária à sua vontade. 4. Os direitos patrimoniais são incomunicáveis na ausência de pacto antenupcial nesse sentido. 5. Descabimento da avaliação judicial do acervo fotográfico. AGRAVO DESPROVIDO.(grifo nosso)

APELAÇÃO. SEPARAÇÃO. PARTILHA. Em sendo comuns as cotas, é de rigor determinar sejam divididos os lucros distribuídos pela empresa. A patente sobre invento criado pelo apelado é personalíssima e exclusiva dele.(grifo nosso)

Agravo de instrumento. Direito de família e direito autoral. Divórcio. Arrolamento de bens. Obra intelectual protegida. Incomunicabilidade. Recurso voltado contra decisão que concedeu liminar para determinar o arrolamento dos bens sob a guarda do cônjuge varão, consistentes em obras de arte por ele criadas. Proteção conferida pela Constituição Federal e pela Lei de Direitos Autorais, que estabelece a incomunicabilidade dos direitos patrimoniais do autor, salvo previsão contrária em pacto antenupcial. Possibilidade de comunicação apenas dos rendimentos resultantes da exploração da obra, e somente no período que medeia entre sua percepção e o término da relação conjugal, dada sua natureza de proventos do trabalho pessoal do cônjuge. Interpretação sistemática do artigo 5º, XXVII da Constituição Federal, dos artigos 3º; 4º; 11; 22; 24; 27 a 29; e 39 da Lei nº 9.610/98 e do artigo 1.659, VI do Código Civil. Ausência dos requisitos autorizadores da concessão de liminar. Decisão reformada. Recurso provido.

  1. CONCLUSÃO.  

Por tudo que restou abordado, é possível concluir que embora o direito patrimonial intrínseco ao direito de família esteja em constante evolução, cada vez mais prezando pela igualdade de tratamento entre os nubentes, a mesma evolução e proteção também está acontecendo com a obra intelectual.

É certo que a obra intelectual mereceu proteção constitucional, e segundo a legislação infraconstitucional, possui natureza jurídica sui generis, possuindo conteúdo patrimonial e moral.

Logo, o conteúdo moral é inalienável e intransmissível, em razão do caráter personalíssimo.

De outro contorno, o conteúdo patrimonial pode ser alienado, no entanto, segundo a doutrina e jurisprudência majoritária, os direitos patrimoniais incidentes sobre a obra intelectual são incomunicáveis na partilha entre vivos, no caso de inexistir paco antenupcial em sentido contrário.

Entende-se que em tal situação (incomunicabilidade), existente por expressa disposição legal, e não afronta as disposições constantes no Código Civil vigente, nem tampouco aos principais constitucionais da igualdade e da pessoa humana, mesmo porque, a obra intelectual também mereceu proteção constitucional.

Com isso, para que haja a comunicabilidade da obra autoral no caso de partilha entre vivos, é imprescindível a preexistia de antenupcial fazendo tal previsão.

Referências Bibliográficas:

BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958.

ENGELS, Friedrich. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal – 2: Tradução Ciro Mioranza: São Paulo. Editora Escala. p. 12.

Dias, Maria Berenice. Manual de Direito de Família. 7ª Edição. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p.31.

Fachin, Luis Edson, Da Paternidade, relação biológica e afetiva, saraiva, São Paulo, 2004 p.83.

PIOVESAN, Flávia: direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 438. TJRS – Agravo De Instrumento, Sétima Câmara Cível, nº 70011230414, Comarca De Porto Alegre

Marinoni. Luiz Guilherme. Tutela Inibitória do Direito Autoral. Parecer ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais. Curitiba 2008.

PIMENTA, Eduardo; PIMENTA, Rui Caldas. Dos crimes contra a propriedade intelectual. 2 ed. rev.,

ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005., p. 33.

TJRS. Apelação Cível nº 70048117212, DES. RUI PORTANOVA – Presidente – Comarca de Erechim.

TJRS. Apelação Cível nº 70048117212, DES. RUI PORTANOVA – Presidente – Comarca de Erechim

TJ-RJ – AI: 00527956120128190000 RJ 0052795-61.2012.8.19.0000, Relator: DES. FLAVIA ROMANO DE REZENDE, Data de Julgamento: 03/04/2013, VIGÉSIMA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 27/12/2013 15:17

Precisa de ajuda?